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Tá lento

  • Foto do escritor: Marcelo Madeira
    Marcelo Madeira
  • 1 de mar. de 2017
  • 5 min de leitura

O telefone tocava insistentemente, e, eu, profundamente irritado só pensava quem era o infeliz que me chamava a esta hora da madrugada. Pra alcançar o telefone derrubei alguns livros da cabeceira, e quase, entornei a caneca de chá. Com os olhos ainda semicerrados constatei no despertador que não era tão cedo assim. Já eram dez e meia da manhã. Atendi com a voz no chão.


No outro lado da linha era Dona Quitéria, do quinze. Perguntava-me, soluçando muito, se eu havia visto seu gatinho de estimação. Ele atendia pelo nome de Xeréu. Por mais que ela estivesse acostumada às andanças do seu gatinho, estava agora muito preocupada, dizia-me que há três dias e três noites ele andava desaparecido.


– Sinto muito, Dona Quitéria. Se eu encontrá-lo, eu ligo pra senhora.


Refiz-me da sonolência e fui tomar uma ducha. Tinha de me preparar para o concerto ao meio dia no coreto da praça central. Eu tocava tuba na banda do município. Era para mim mais um hobby, uma oportunidade de encontrar amigos. O cachê não era em nada convidativo, mas o ambiente familiar acabava justificando o sacrifício de ter que acordar mais cedo.


Eu tinha um emprego numa gravadora de discos. Era o músico, muitas vezes escolhido, pra registrar discos de cantores ou bandas produzidas pela casa. Freqüentemente eu gravava com ícones do sertanejo como Chulé e Frieira, Adoaldo e Damasceno ou cantores brega-românticos como o famoso Décio Pinto do Rego. Para engordar o ordenado, eu tocava saxofone em bares e restaurantes e, quando tinha sorte, nos fins de semana aparecia algum baile para tocar com a orquestra de metais. Tudo me satisfazia, a música era para mim uma paixão. Era não, ainda é, apesar de todos os percalços do ofício.


E lá fui eu, com meu fusquinha 73 em busca de boa companhia. Minha tuba no banco traseiro e eu colado ao volante ignorando os desafetos pelo trânsito. Ao chegar a satisfação era total, todos já estavam lá. A maioria era de senhores aposentados que viam ali a oportunidade de rever amigos e bater um bom papo. A banda era aplicada. O maestro apesar de ser um tipo meio temperamental, era um sujeito legal. Difícil era adivinhar seu inconstante estado de humor. Muitos dos músicos já estavam tarimbados com os devaneios do maestro.

Diziam que, se ele erguesse a batuta de forma enérgica, olhando para o chão, cabelos sobre os olhos e tivesse discretos tiques nos ombros, era sinal que ele não estaria satisfeito com o desempenho da banda, mas, se ele depois de um final triunfante puxasse a lapela para si, seria um sinal que ele aprovara o concerto. E, é claro, assim todos ficavam felizes. Ele já chegou a dar com a baqueta na cabeça do Elias, nosso solista. Só porque ele se engraçara com as moças sentadas no banco em frente ao coreto.


Todos já estavam a postos. Instrumentos afinados e acertávamos os últimos preparativos. Partitura aberta na página certa. Usávamos pregadores, os mesmos pregadores de roupa para não haver risco das folhas voarem. Certa vez uma folha de minha partitura voou e pude acompanhá-la, com olhos arregalados, até vê-la pousar no laguinho do chafariz no meio da praça. Tive que improvisar e para uma tuba é difícil, pois tenho que manter a pulsação de toda a banda, como um baixo elétrico numa banda de rock. Se eu parasse todos sentiriam a falta de um instrumento tão grave.


O maestro nos pediu silêncio e foi contando até quatro quando de uma viatura negra saltaram três homens sisudos de paletó e gravata e interromperam nosso prelúdio. Diziam ser da prefeitura e logo foram perguntando quem era o responsável pela banda do coreto da praça. O maestro educado se pôs à frente e eles rispidamente perguntaram:


– A banda tem autorização para tocar em praça pública?


Imediatamente o maestro assentiu e sacando do bolso lhes mostrou o documento. Logo começaram os burburinhos. A atitude dos fiscais era estranha já que tocávamos ali há anos a fio. Porém, Geraldo, o oboísta, recordara que um novo prefeito assumira recentemente o nosso combalido município. E, talvez, esta fosse a razão para a tal visita: A prefeitura estaria intensificando a fiscalização.


Não contentes com o nosso alvará de banda de praça pública, os fiscais se dirigiram aos músicos.


– Queiram, por obséquio, apresentar as respectivas carteiras de músico e carteira de identidade – ordenou um dos fiscais que parecia ser o chefe.


E nós todos, reticentes, repousamos os instrumentos no chão e apanhamos do bolso os tais documentos. Eu estava tranqüilo, pois sabia que minha carteirinha estava atualizada. Todo ano eu pagava a anuidade para ter o direito de exercer minha humilde profissão. Fato este que me entristecia extremamente. Eu via nessa atitude um ato de tirania. Ora bolas, se eu fosse um profissional da saúde, um arquiteto ou engenheiro em que do exercício de minhas habilidades dependesse o bem estar de outras pessoas, até que daria pra entender o porquê de possuir um certificado da profissão. Como por exemplo, um arquiteto que tem o dever de construir uma casa sem que o teto desabe, ou, um médico-cirurgião, que se fizer um erro, pode ser fatal ao paciente. Mas, no nosso caso, no caso do músico, se ele não exerce suas habilidades com responsabilidade, o máximo que lhe pode acontecer é não ter público. Se não tem público, não tem cachê. É ou não é?


E enquanto eu divagava do ser ou não ser da questão, eis que se põe à minha frente a confusão. Nesse ínterim, Pascoal, nosso flautista, ao ser interpelado pelos fiscais certificou-se de que não havia trazido a bendita carteirinha. Ele, pálido, desculpava-se quase de joelhos aos cerceadores que não disfarçavam o deleite estampado em sorrisos cínicos. O maestro logo interveio, mas, sem sucesso. O fiscal, erguendo as calças ao umbigo, repetia sem hesitação: A lei é a lei!


Sem educação ou gentileza, vimos nosso colega Pascoal ser retirado do coreto por dois brutamontes de terno e brilhantina no cabelo. Os músicos todos pasmos, sem reação. E o pobre maestro ainda tentava remediar a situação, mas, o homem só repetia: A lei é a lei! E depois de uma breve pausa, mudou o tom:


- A não ser que o senhor tenha alguma idéia para solucionar este problema.

- Uma idéia co-co-como? - titubeou o maestro.


- Ah! Isso quem tá dizendo é o senhor. O senhor quem sabe - desconversou o fiscal. Nós nos entreolhávamos e não sabíamos ao certo se nosso maestro entendia ou se fazia de parvo. - Fica a seu critério - continuou.


O maestro não disse uma, nem duas, talvez não tenha entendido mesmo. Ele fazia aquele estilo, meio desligado, meio...Assim, digamos, meio maestro.


- A lei é a lei! - endureceu o fiscal - Tenho que autuá-lo por exercício ilegal da profissão.

Fim de papo. O fiscal chamava reforços ao walk-talkie e em seguida chegava o camburão. O povo se amontoava ao pé do coreto. Vamos tratar disso na delegacia dizia o fiscal abrindo espaço na multidão.


Atônitos, não sabíamos o que fazer. As viaturas se afastavam com nosso pobre colega levado como um delinqüente. Só nos restava continuar o concerto. Afinal, era nosso compromisso e dele defendíamos nossa féria.


O maestro se recompôs, pediu silêncio. Todos a postos. Ele ergueu a batuta e contou até quatro. No primeiro acorde ouviu-se um grunhido estridente. A banda de imediato esmoreceu. O maestro retomou a contagem, e novamente, ao soar as primeiras notas da banda, surgiu novamente um ruído ensurdecedor, como giz riscando o quadro negro. Todos chegaram a tapar os ouvidos com as duas mãos. O maestro já nervoso e descabelado pediu concentração e na terceira tentativa empunhou enérgico a batuta e sacudiu-a no ar. A banda reinicia a toada e nem chega ao segundo compasso. Eis que salta de dentro da minha tuba um gato malhado e rabugento. A banda paralisada vê o pobre bicho medrado pular sobre as cabeças dos instrumentistas até sair em disparada pela praça. A população, tomada pela algazarra, corre atrás do felino enquanto outros aplaudem pensando se tratar de um novo número.


Todos os músicos me fulminaram com olhares enfurecidos como flechas incandescentes e eu, sem ter onde me enfiar, esbocei sem graça um sorriso amarelo só tendo o consolo de enfim ter achado o tão procurado gato de Dona Quitéria.


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 O Autor 

 

 

Sagitariano, publicitário, escritor músico, alfabetizador, assistente social e Mestre Reiki . 

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