Ossos do ofício
- Marcelo Candido Madeira
- 28 de jul. de 2016
- 2 min de leitura

A arte de escrever tem suas satisfações, mas também as suas desilusões. Lembro-me do dia em que me vi numa situação constrangedora por causa de um dos meus textos. Tudo começou num desses tão esperados feriados prolongados que a gente marca no calendário com meses de antecedência. Não via a hora de poder me desligar do trabalho e curtir minha família numa pousada à beira mar.
Pegamos a estrada bem cedinho. Uma sensação de alívio tomou conta de mim, mas não durou muito. Eu havia esquecido de escrever uma crônica que deveria ser entregue ao jornal sem falta na segunda feira. Fiquei visivelmente preocupado e minha mulher logo reparou: “Não está pensando em trabalho, não é?” Tentei disfarçar, mas só pensava sobre o que eu iria escrever. Eu não tinha idéia alguma. E não queria me repetir nos temas das semanas anteriores. Na verdade eu só queria saber de descansar. Estava exausto.
Passei todo o feriado coçando a testa, matutando. O pior é que nada me vinha a cabeça. Nenhum assunto ou tema interessante ao qual eu pudesse dedicar uma crônica. Branco total. Nada de tão espetacular havia acontecido nos últimos dias, a mesmice de sempre. Cheguei a pensar que estava perdendo minha criatividade.
Na viagem de volta pegamos uma estrada boa, sem maiores congestionamentos. As crianças dormiam no banco de trás enquanto eu conversava com minha mulher assuntos triviais. Quando de repente surge no espelho retrovisor, um carro ensandecido zigue-zagueando por toda a pista. Ele nos ultrapassa como uma bala de canhão e se lança sobre outro carro mais à frente. Desvia bruscamente evitando o alvo, mas acaba raspando a lateral em um outro veículo até se chocar com as barras de proteção do acostamento.
Eu e minha mulher estávamos estarrecidos. As crianças acordaram assustadas com o barulho. Passamos lentamente e pudemos reparar bem a marca do carro: um Audi prateado novinho em folha. E daí me veio a idéia de escrever uma crônica sobre imbecis que põem em risco a vida de famílias inteiras na estrada em veículos caros e possantes. Cheguei em casa e escrevi, numa tacada só, o que eu havia visto naquela tarde, e ainda ridicularizei motoristas que não obedecem aos limites de velocidade.
No dia seguinte, ao entrar na redação, o editor-chefe me recebeu de braços abertos:
- Que bom revê-lo, aposto que você me traz umas daquelas suas crônicas bem engraçadas capazes de me trazer o bom humor!
- Sim, trouxe uma que o senhor vai gostar.
- Estou precisando ler algo bem divertido. Tive um fim de semana daqueles! Lembra-se daquele meu Audi prateado novinho em folha? Pois então, ontem mesmo tive um acidente com ele! Tudo por causa dessa gente que fica dirigindo como lesmas na estrada. Você também não fica irritado com essa lerdeza que só faz atrapalhar o trânsito? É por isso que acontecem os acidentes! Por causa de um punhado deles ontem bati o carro, risquei a lateral e ainda bati nas barras de proteção. Um horror! Mas deixa estar. Ainda bem que tem você para me trazer de volta o bom humor, não é mesmo? Então? Qual a crônica que temos esta semana?
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