O menino e as estrelas
- Marcelo Candido Madeira
- 4 de dez. de 2015
- 4 min de leitura

Sempre o observo da janela, ele com os outros moleques rodando pião, zigue-zagueando por aí, chutando lata e jogando botão. Eu apenas o observo, ele mal me conhece. Minha mãe não permite que eu brinque lá fora, no máximo, deixa-me ir até a jabuticabeira rente a cerca. E lá fico montada, comendo fruta no pé e vendo as travessuras daquele que um dia será o meu namorado.
Na escola, eu me sento à frente, sempre. Ele, ao fundo. Não faz bagunça como outros meninos, e está sempre distante. Parece que gosta de pintar. Nunca pude ver o que ele rabisca em seu caderno. Ao tocar o sinal, eu o espero sair primeiro, e então o sigo com os olhos. Todas minhas amigas sabem do sentimento que nutro por ele. Já tive a coragem de lhe enviar cartinhas pintadas à mão revelando o meu amor. Porém, não as assinava, nunca, Deus me livre. Não tenho nem mesmo coragem de conhecê-lo pessoalmente. Eu já ouvi sua voz ao conversar com os outros meninos. Uma voz tão doce, tímido que ele é.
Com ele hei de me casar. Já fiz até uma promessa: toda noite, antes de dormir, rezo o Pai Nosso e acendo uma vela para o Santo Antônio Casamenteiro. Minhas amigas me ensinaram uma simpatia para rogar uma prece e assim, ele, um dia me escolherá. Fiz a simpatia duas vezes para não facilitar. Escrevi, em um papel em branco, o nome dele. Coloquei-o num pote de vidro e em seguida, derramei açúcar e caramelo. Tampei bem o pote e enterrei num terreno baldio. Na verdade, ninguém poderia conhecer o local onde enterrei meu objeto de afeto, no entanto, minhas amigas mais leais acompanharam-me curiosas.
Nos jardins floridos, o vento, comigo, despetala as flores, sussurrando; bem-me-quer ou mal-me-quer. Na paróquia perto de casa, vou orar. O padre, ao saber de minhas sinceras intenções, deixou-me atrás do púlpito rezando mais de três terços. Prometi a mim mesma, nunca mais contar a ninguém sobre meus sentimentos. A não ser a minhas amigas, que me encorajam sempre com novas simpatias.
A última que elas me trouxeram parecia ser muito promissora. Eu deveria me posicionar em frente ao sol poente e chamar trinta e três vezes o nome de meu amado e em seguida dizer: “Raio de sol, atinja a mente do meu amor e impulsione seu pensamento até mim”. Clamando seu nome por trinta e três vezes, recitei os versinhos em meio a risos abafados de minhas colegas. Cheguei mesmo a repetir tal tarefa para me certificar de sua eficácia. Ao voltarmos para casa, já com a tarde caindo, uma das minhas amigas me confessou que gostaria muito que ela tivesse também alguém em quem pensar. Fiquei orgulhosa e feliz em saber que realmente eu tinha alguém em meu coração. E sabia que um dia o teria ao meu lado.
Na festa de São João, todos estavam lá. Dançamos quadrilhas, comemos pamonha e pipoca. Ele estava sempre acompanhado de seus amigos. Eu, acompanhada de minhas amigas. Caprichei nas palavras do correio elegante, mas não soube até hoje se ele as recebeu. Minhas amigas me enchiam de idéias mirabolantes para proporcionarem um encontro a dois. Eu me enrubescia.
A fogueira ardia no meio da praça e meu peito ardia em brasas. Tirei a sorte no realejo e me enchi de coragem com o que eu li: “Este é um momento único em sua vida! O seu equilíbrio é o principal responsável por sua força espiritual. E eles estão com tudo! Aproveite o momento e invista na sua felicidade conjugal”. Fechei o punho amassando contra mim o papelzinho e um sorriso iluminou o meu rosto. A lua estava cheia e o sanfoneiro embalava meus suspiros. Aquele aroma de vinho quente e canela no ar me fazia flutuar. Os fogos de artifícios que os meninos manuseavam atrevidos pareciam mesmo me projetar às alturas. Era agora ou nunca.
Ajeitei minhas tranças, enchi-me de ânimo e fui ao seu encontro. Tive sorte, ele estava sozinho, sentado embaixo de uma jaqueira. Um calafrio subiu em mim. Estava pálida. E lembrei-me das palavras do realejo: “Este é um momento único em sua vida”. Pois bem, comecei com as apresentações. Ele ergueu o rosto e disse que já me conhecia. De onde? Perguntei. Do colégio. Ah! Claro. Estudamos na mesma classe. Ele foi gentil em puxar o assunto, falava das estrelas. Que eram elas tão grandes, mas que estavam tão longe e por isso pareciam assim pequeninas. E tão difícil de alcançá-las, pensei. Quando ele parou de falar do seu fascínio sobre o céu, eu, mesmo de pé, desatinei a me declarar dizendo que eu gostava muito dele e que há muito só pensava em conhecê-lo. Disse que o seguia com o olhar soturno pelo pátio do colégio e sabia até com qual dos meninos, ele mais se simpatizava. Que gostava do seu jeito de jogar bola e lidar com o pião. Que aprendera com ele a subir em árvores e que até tomei gosto por futebol de botão. Não disse nada, é claro, sobre as simpatias. Disse ainda que eu morria de curiosidade de conhecer o conteúdo do que ele, durante as aulas mais chatas, desenhava em seu caderno.
Depois de longa exposição, senti-me envergonhada e ansiosa em saber o que ele diria. E para meu espanto ele, em sua calma peculiar, voltou-me os olhos e disse, sem que eu soubesse, se suas palavras seriam um caloroso acolhimento, ou, uma árdua repulsa:
- Você já contou estrelas?
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