Cibele da varanda
- Marcelo Candido Madeira
- 18 de set. de 2015
- 3 min de leitura

O vento estava favorável, então ela soltou, debruçada na varanda do quarto andar, sua pequena pipa hasteada num fio de nylon. A seda frágil oscilava no ar e ela a manteve assim por um bom tempo. A criançada logo se ouriçou, apontavam para o objeto e gritavam: Olha a pipa, olha a pipa! Logo já havia um amontoado de crianças correndo pelo pátio. Numa destreza sem igual, ela se deu conta que ainda sabia empinar papagaio, afinal, o pequeno artefato respondia muito bem.
Quando viu que toda a criançada estava hipnotizada pelo brinquedo voador, ela, num movimento brusco, o fez cair direto ao chão. Os meninos tomados por uma algazarra correram para apanhá-lo. Mesmo com a pipa estirada no pátio, ela mantinha firme o fio de nylon. Deu uma tragada forte no cigarro atenta a reação das crianças. Estas tomaram o artefato desmilingüido pelas mãos, quando a menina, que parecia ser a mais velha do grupo leu os dizeres escritos em português: “Socorro. Eu me chamo Cibele. Sou prisioneira do quarto andar”.
A menina ergueu a cabeça e seus olhares se encontraram. Pela aparência assustada da menina, Cibele sabia que ela tinha entendido a mensagem. Sem esboçar nenhuma reação a moça permaneceu estática na varanda. A menina pôs-se a correr com a pipa nas mãos e os meninos a seguiram gritando: “É minha, é minha, eu vi primeiro”! Neste exato momento chega Madame Gertrudes e a moça, num reflexo rápido, solta o fio varanda a baixo.
- A hora da pausa acabou, minha filha. Tem muito trabalho hoje ainda por terminar.
- Sim, senhora - E pela primeira vez lhe respondia com mais auto-estima.
Dirigiu-se ao atelier e juntou-se às outras companheiras de trabalho. Permaneceu tranqüila, mas um sorriso lhe escapara dos lábios, Jung Chi estranhou: ninguém sorria naquele estabelecimento havia meses. Cibele recompôs-se, engoliu o sorriso e voltou a trabalhar. Não queria que ninguém desconfiasse que sua liberdade estava por um fio.
A noite veio e Cibele não conseguiu conciliar o sono. Com os olhos grudados no teto sonhava acordada com sua pipa de seda pairando sobre o pátio repleto de gangorras e a criançada fazendo arruaças.
O dia seguinte foi igual a tantos outros, depois de um café morno com pão e manteiga, debruçou sobre os tecidos cintilantes que através de suas mãos um dia seriam fantasias de lantejoulas usadas por strippers e garotas de programa. Suas companheiras Jung Chi da Tailândia e Polina da Macedônia já estavam com suas máquinas de costura ligadas a todo o vapor. Era tamanha a tristeza que elas mal se cumprimentavam.
Ao meio dia, ouve-se a porta aos murros. Os olhos das três brilharam. Madame Gertrudes hesita. As batidas na porta se intensificam:
- Polizei! Öffnen Sie die Tür!
Madame abre a porta com um ar insolente e despreocupado. A polícia logo sem muita delicadeza força a entrada. Atrás de um grupo de policiais, dois vizinhos se espreitam para olhar o interior da casa. Madame Gertrudes pede explicações dizendo que não têm o direito de invadir seu lar. O tenente se antecipa e diz que receberam uma denúncia na qual a acusam de manter moças prisioneiras para o trabalho escravo. Mal que ela pudesse se defender o cabo traz as três moças e entre elas Cibele, enfraquecida e assustada. Os policiais dão voz de prisão a Madame Gertrudes. O tenente ainda verifica se há linha no telefone, sem sucesso. Um dos vizinhos se aproxima de Cibele e lhe pergunta:
- É você a Cibele? - Ela assentiu com um movimento tímido da cabeça e ele prosseguiu: - Como sabia que as crianças eram brasileiras como nós?
- Há cerca de três meses, todo dia, eu tinha apenas autorização para fumar um cigarro na varanda e escutava sempre a criançada brincar em português. Foi por isso que tive a idéia de fazer uma pipa com tecido de seda com uma mensagem de socorro escrita à tinta.
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